Metódica devassidão

O jornalista Eugênio Bucci falou anteontem, dia 20, no Rio de Janeiro, para “Mutações: a sensibilidade e a construção do mundo”. Partiu de uma constatação de Thomas Mann sobre a figura do artista, que deve ser devassa e disciplinada a um só tempo. A constatação, que parece absurda, explica-se se considerada a arte como a sofisticação do sensível, para qual concorre, claro, a disciplina; do contrário, não se alcança a maestria numa forma de expressão. E a devassidão? É o caminho da “estesia”. Um artista anestesiado está morto. Também se adestrado. Mas aqui cabe atenção, já que o irrefreável pode tornar-se insaciável.

“O império dos sentidos” é um filme que trata dessa questão. A história começa com uma relação sexual entre um senhorio e uma criada dele que foi prostituta, e logo cresce e se torna sem limites. Sensibilidade e sensualidade se intercambiam. Elas são tão cuidadosamente trabalhadas que é como se a pele, num arrepio, adivinhasse o toque, o beijo, a penetração; nunca olfato e audição foram mais aguçados. Uma frase do diretor do filme explica seu sentido: “Numa filmagem, o que se quer ver é a morte. Homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, humanos e animais fazendo sexo”. E em tudo isso, por mais que não pareça, vai linguagem, porque as palavras orientam os sentidos do corpo, como na relação dos pervertidos com os pés. E, por isso, não são só mucosas, mas também seus nomes. Enquanto se beija o bico de um seio, beija-se também a palavra que o designa. E como toda relação de amor pressupõe uma relação de poder, há em tudo isso disciplina. Isso se esclarece caso se pense numa relação de submissão. O deus do bacanal acaba por ordená-lo. O deus do artista também; ele transforma o saber em expressão.

O Marquês de Sade levou tudo isso ao extremo. Transformou o mundo em delícias até então não elaboradas. Através da elocução, transformou libertinagem em filosofia.

Em “Filosofia na alcova”, em que diversos personagens narram suas aventuras sexuais, Dolmancé dedica-se a falar de filosofia política, não sem erotismo, noite a dentro. Trata das mais terríveis perversões sociais. Nisso, adianta a crueldade do Capitalismo em séculos. Capitalismo que acaba por matar a sensibilidade e a sensualidade pela morte do sentido.

Veja a conferência em https://www.youtube.com/live/BYyyLJhRoa0?si=DQSoHRJGospgl1c0