Há uma anedota famosa de Paul Valéry em Degas, Dança, Desenho na qual ele conta que o grande pintor francês adorava atender chamadas telefônicas enquanto recebia visitas para impressioná-las com a então nova tecnologia. Degas fez isso diante de Valéry que, sem se deixar impressionar, retrucou dizendo quão estranho era esse aparelho que mal soava e já fazia com que as pessoas ansiosamente respondessem ao seu chamado, tornando-as escravas.
Ainda no início do século XX, Valéry já percebia o quanto essas acoplagens técnicas se tornavam um campo de transformação da sensibilidade cada vez mais dependentes dessas engrenagens. Tanto assim que, no final da sua vida, dedicou boa parte do seu “Curso de Poética” à necessidade de reinvenção da experiência sensível como um modo de resgatar a sensibilidade, assim como a arte e a ciência, de um complexo jogo de poder em que crenças e imagens se atrelavam ao controle social como Degas sem perceber se rendia ao seu novo aparelho.
Tratava-se, como veremos, de entender que o sensível na verdade é um cruzamento de sensibilidades heterogêneas atravessando o corpo e o mundo, desde os diversos sentidos às mais variadas formas artísticas e científicas, uma experiência de uma sinestesia cinestésica que se dá pelo cruzamento desses diversos campos e pela determinação recíproca entre eles. E esse atravessamento de sensibilidades é tão mais decisivo quando se percebe que a própria linguagem nada mais é do que um modo particular de amarrar as experiências sensíveis.
Entramos assim em um mundo no qual o sensível e a linguagem se confundem, os sentidos e o pensamento se tocam, a presença e a ausência dançam juntas em busca da singularidade de sua relação, a prosa torna-se poética e a poética um caminho para as formas de relação em que a própria relação não está dada – assim como a sensibilidade não é algo dado – mas algo que se deve continuamente fazer e refazer.
Isso nos levará à relação entre a experiência poética e as formas de pensar, não apenas a partir das relações entre o som e o sentido de “Poesia e pensamento abstrato” do poeta francês, mas abrindo para outras possibilidades como aquela de Fernando Pessoa tomada como mote para este ciclo de palestras de que “o que em mim sente está pensando” e seu avesso proposto por Augusto de Campos de que “o que em mim pensa está sentindo”.
Lembremos que esse verso de Pessoa faz parte do poema “Ela canta, pobre ceifeira”, onde a questão da voz, pairando “no ar limpo como limiar”, se torna um ponto privilegiado dessas zonas fronteiriças de encontros entre diferentes sensibilidades e diferentes mundos (“Ah, poder ser tu, sendo eu”). A voz como esse limiar, ou como lemos em um verso magistral de “O Cemitério marinho” de Valéry, como “A transformação das margens em rumor”.
Trataremos especialmente da voz, desdobrando-a em escuta, movimento, ressonância, transformação, buscando esse lugar em que o próprio corpo se faz linguagem e o sensível se torna uma possibilidade de reinvenção da nossa relação com o mundo. Trata-se, em suma, de uma tentativa de explorar a ambiguidade semântica da palavra “sentido”: seja tomada como o que vem dos sentidos e da sensibilidade, seja como um modo de significação, ou, ainda, como uma direção, um vetor de forças na relação entre mundos heterogêneos internos e externos, seja, por fim, como aquilo que é sentido, aquilo que sentimos e que pauta tanto ética quanto politicamente nossa relação com o mundo.