“Se Marcel Duchamp não tivesse vivido, era preciso que vivesse alguém exatamente igual a ele, para que pudesse existir um mundo como este que estamos começando a conhecer e experimentar.”
John Cage
Muito foi discutido pela crítica e história da arte sobre o legado de Duchamp para a arte contemporânea e para o mal-estar da estética. Os readymades pareciam uma espécie de xeque-mate na experiência estética e nas formas tradicionais de arte. Mais do que isso, uma virada decisiva em direção à arte conceitual, tomada como recusa do sensível, do lado do espectador e da materialidade da arte, do lado da obra. De certo modo, esta desconexão entre o sensível e o conceitual reverberaria os desdobramentos da ciência, ou seja,
o divórcio radical entre o que eu sei e o que eu sinto.
É a partir deste diagnóstico, que tem sua validade e razão de ser, que pretendemos propor um outro desdobramento do legado duchampiano, repensando a partir dele o papel da imaginação e do juízo estético, ou seja, como ele transformou, sem interditar, nossas formas de ser afetado e de sentir. Ao contrário do que normalmente se atribui, vejo na poética de Duchamp não uma desmaterialização da arte, mas sua multimaterialização. Qualquer coisa passa a poder ser arte.
Aí mora o perigo. Qualquer coisa poder ser arte não implica que tudo o seja, desde que o artista assim o denomine. Entre qualquer coisa poder ser arte e tudo não se transformar necessariamente em arte, entra em cena a atividade judicativa. Aquilo que de alguma maneira é partilhado pelo artista e pelo público. Nos termos do próprio Duchamp, entra em cena o coeficiente artístico, que seria a soma entre aquilo que o artista quis fazer e não conseguiu, mais aquilo que não pretendeu e surgiu (a partir do olhar ativo dos espectadores, da posteridade crítica). Assim sendo, para além de uma vontade de arte por parte do artista há necessariamente os desdobramentos posteriores da recepção e a inserção daquela ação poética dentro de um novo regime de produção e de percepção do que possa ser arte.
A tentativa de compreender o legado duchampiano pode ser uma forma de reconfigurarmos os modos pelos quais imaginamos formas de vida heterogêneas, embutidas aí formas de sentir e de pensar descoladas daquelas já instituídas, alargando assim o campo dos possíveis.