Na primeira metade do século XVII duas viagens decisivas fornecem o ponto de partida da reflexão que proporemos nesta palestra.
De um lado, em 1605, Alonso Quijano completa sua metamorfose livresca, convertendo-se em Don Quijote de la Mancha. Viagem segunda, repleta de desventuras e desencontros, mas fruto da viagem iniciática do fundo da biblioteca ao coração do mundo. Qual o papel desempenhado pela materialidade do texto impresso no transe do cavaleiro da triste figura? Qual a importância do livro, enquanto objeto físico, no livro de Cervantes, verdadeira enciclopédia de formas por vir do gênero romance?
Em 1637 veio à luz outra grande navegação, narrada em dicção autobiográfica. No Discurso do método, Descartes recorda a peregrinação do máximo contato entre corpos, a guerra mesma, ao mínimo de corpo em contato consigo próprio. Então, protegido do frio num quarto bem aquecido, na virtual ausência de sensações físicas, o filósofo encontrou-se com o cogito. Nas Meditações radicaliza-se o apagamento do corpo como condição incontornável ao ato filosófico.
No texto impresso, precisamente, o corpo é reduzido a um simulacro de sua impossível presença na arte da pontuação – essa respiração artificial que, em tese, deveria orientar o leitor, perdido numa floresta de símbolos gráficos sem correspondência à vista.
Corpo que retorna com vigor na arte-pensamento de Hélio Oiticica e Lygia Clark, cujas obras mais inovadoras supõem a transformação do observador-sem-corpo dos museus no participante-corpo-em-ação das instalações. Nesse arco temporal generoso, uma história alternativa das sensações exige que se conceda protagonismo à materialidade dos meios.