“Toda sensação comporta um germe de sonho ou de despersonalização.”
“Quer se trate dos vestígios ou do corpo de outrem, a questão é saber como um objeto no espaço pode tornar-se o rastro falante de uma existência.”
Maurice Merleau-Ponty
A existência de uma instância de pensamento inteiramente apartada do sensível não passa de uma quimera. Mesmo ali onde penso não sentir, meu corpo não deixa de se apresentar, de alguma maneira – uma tosse que interrompe a frase, a respiração que se acelera, um suspiro ou bocejo indicam, como a ponta de um iceberg, que um mundo de sensações (macro- ou microssensações, internas ou externas) acompanham cada pensamento. Tais incidentes corpóreos talvez não estejam tão distantes quanto se poderia imaginar de fenômenos linguageiros como o esquecimento de um termo ou do modo como uma palavra pode se esgueirar, estranha ao sentido que a sequência anunciava, por exemplo. Um dos principais ensinamentos da prática clínica em psicanálise talvez seja o reconhecimento de que o grão da linguagem, por assim dizer, não é diferente daquele do corpo: certa entonação ou um súbito engasgo, a voz que de repente falha ou se torna mais grave, uma hesitação que se prologa e corta o ritmo da significação prevista, tudo é igualmente parte do que se comunica.
Nesta direção podemos supor que todo conceito e toda reflexão dão notícias daquele que sente e deseja, ainda que este não o queira e acredite na neutralidade e universalidade de um pensamento incorpóreo e anônimo. Todo conceito tem uma dimensão prosódica e mesmo no texto de um autor morto há séculos, certa modulação de voz talvez seja capaz de nos atingir, desde que nossa leitura se preste a certa flutuação (por analogia à escuta do analista, que seria flutuante).
Mas a recíproca também deve ser verdadeira: a sensibilidade não vai sem pensamento. Poderia algum sensível fazer-se perceber por um circuito inteiramente isento de linguagem? Ou seria a ideia de que o corpo resiste à linguagem um resquício da velha dicotomia mente/corpo? Se Lacan desconfia dos sentimentos por ligá-los a um Imaginário enganoso e que se deveria depurar pelo rigor do Simbólico, e por isso brinca que o senti-mento mente (“le senti-ment”, como propõe o psicanalista francês), em português podemos fazer ressoar também o substantivo “mente” na conjugação do verbo mentir. Os sentidos não estão fora da mente – em um corpo inteira e exclusivamente feito de matéria sensível e não-linguageira –, mas mostram que estamos de saída e inelutavelmente em um espaço múltiplo e indecidido entre mente e corpo no qual se imbricam visão, tato, olfato e tantas outras sensações, como insiste Merleau-Ponty. E da trama complexa do campo perceptivo também participam, acrescentaríamos, o humor ou estado de espírito que se apresenta no momento, bem como cenas que possam vir à memória, ou ainda as palavras que descrevem (como em eco) ou deslegitimam o que se percebe; é impossível haver um momento de percepção inteiramente incólume à linguagem. Além disso, o campo perceptivo é múltiplo, como argumenta o fenomenólogo, tanto no que diz respeito à imbricação entre os diversos “sentidos” quanto ao fato de que nunca se está sozinho no espaço, mas sempre em entrecruzamento com campos perceptivos de outras pessoas. E no emaranhado de tais campos sem dúvida se marcam, vale sublinhar, alguns significantes como linhas de força a comandar a construção tão problemática quanto supostamente evidente a que chamamos “realidade”.
De fato, desarranjar as relações entre razão e desrazão, como faz a psicanálise, implica uma recusa da convencional distinção entre sentir e pensar, sensibilidade e intelecto, emoção e linguagem. Podemos pesá-lo nas elaborações freudianas sobre a memória, especialmente. “Lembrar” não é mais que um “meio”, um “método”, dizia Freud já em 1897, rompendo com radicalidade qualquer laço essencial entre o momento da percepção em si e aquele em que dela nos recordaríamos. A psique é uma espécie de máquina trituradora; ela se define por fragmentar, triturar, combinar e recombinar elementos mínimos – traços de percepção, rastros de traços, gestos quase despercebidos, letras, palavras. Uma letra pode equivaler-se à visão das pernas de uma mulher de quatro no chão (o V no célebre caso do “Homem dos Lobos”), enquanto a cor amarela particularmente forte em uma recordação pode espalhar-se das flores nas mãos de uma menina (de quem o próprio Freud criança, acompanhado de outro menino, arranca o buquê) e transferir sua nitidez, por assim dizer, para o significante deflorar. As mais nítidas lembranças não só podem ter sido construídas, como sua vivacidade seria justamente o que faz desconfiar que sejam um véu que encobre lembranças quiçá factuais. Memórias podem ser telas que mostram e escondem lembranças, ao mesmo tempo ou alternadamente. Em suma: não há memória sem narrativa.
É pouco reconhecida a radicalidade com a qual Freud esvazia a experiência perceptivadequalquerpretensão empirista e a reduz a vestígios, traços/rastros (Spuren) discretos que podem ou não se inscrever psiquicamente, combinarem-se e recombinarem-se, apagarem-se aparentemente ou se substituirem mutuamente ao sabor do batimento entre distintas “camadas” que são como folhas de um bloco de anotações que podem se justapôr – de modo a deixar aparecer na página mais superficial o que está inscrito na última, como por mágica –, mas também se desconectarem umas das outras e assim tornar ilegíveis tais traços, como concebe Freud em 1925, com seu modelo do “bloco mágico”.
De fato, a reflexão freudiana é mais afeita aos batimentos do sonho, da alucinação e do delírio do que às bases pretensamente empíricas da prospecção perceptiva. O modo de construção do mundo por ela concebido – e talvez em alguma medida promovido, na prática clínica, através daquilo que Freud chama “construções em análise” – não tem em seus alicerces qualquer solidez de dados sensoriais a reafirmar a invariabilidade de uma suposta e evidente realidade. Nele não se trata tanto de uma firme estrutura a organizar os elementos em um todo coerente e imutável quanto de um dispositivo de (re)construção incessante de conformações singulares e moventes: de uma espécie de caleidoscópio a ativar a combinatória infinita de suas minúsculas peças de cristal.
Entre corpo e linguagem, tais conformações caleidoscópicas não se compartilham de forma total e unânime como “a realidade”, mas transmitem-se entre nós como “rastros falantes” (ou visíveis) “de uma existência”, para dizê-lo como um dos trechos de Merleau-Ponty que citamos em epígrafe. É privilegiadamente no campo da arte que isso se explicita como jogo complexo entre o sensível e o inteligível, corpo e linguagem, coisa e representação, e portanto nele vamos buscar sendas para investigar mais detalhadamente tal modo de construção caleidoscópico do mundo. Exploraremos na conferência as estratégias postas em jogo especialmente na obra de Arthur Bispo do Rosário, que de um só golpe representa e (re)apresenta o mundo, fazendo da memória uma invenção e logrando transmitir, por essa via, a singularidade absoluta de sua vida.