Na filosofia de Nietzsche há tão pouca oposição entre a sensibilidade e a espírito quanto entre a alma e o corpo. “O que o sentido sente, o que o espírito conhece, nada disso tem jamais seu fim em si. Mas sentido e espírito querem persuadir-te de que são o fim de todas as coisas: tamanha é sua vaidade […] Por detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, encontra-se um poderoso regente, um sábio desconhecido – seu nome é si-próprio [Selbst]. Ele vive em teu corpo, teu corpo é ele”1.
A concepção nietzschiana de corpo se constrói em ruptura com a antiga tradição onto-teológica, que o considera como matéria, como ‘carne’, em oposição substancial à razão, ao intelecto e ao espírito. Em Nietzsche esta oposição é suprimida, de modo que razão/intelecto e corpo/sensibilidade se interpenetram em permanente e produtivo contato dialógico –que vem à luz na origem etimológica da própria palavra fisiologia, na acepção em que este filósofo a emprega: um Λόγος da Φύσις: logia ou ciência do físico, do natural. O conhecimento desta pertença essencial entre ambos constitui a virtude intelectual daquele que “está desperto” – ela é, para Nietzsche, a própria sabedoria. Razão pela qual, em sua auto-biografia filosófica Nietzsche confere destaque a um capítulo intitulado Por que sou tão sagaz [klug].
Klugheit é a tradução para o alemão do nome dado por Aristóteles a uma virtude ética fundamental, a σωφροσύνη, que, vertida em português, também denota virtudes como sabedoria, sensatez, sagacidade, inteligência, astúcia, cautela, esperteza, aptidão, auto-domínio, continência, moderação. Virtudes são também para Nietzsche aquisições constantes, capacidades e aptidões anímicas, provenientes do ethos e do hábito, cujo cultivo se impregna e forma o caráter de uma pessoa. Em consonância com isso, Nietzsche se auto-compreende como ‘klug‘- sobretudo em razão de sua disciplina e auto-adestramento da atenção para o essencial: os hábitos e dietas alimentares, a cuidadosa escolha do lugar e clima, em razão da influência da qualidade do ar, secura e umidade, das gradações de luminosidade, da pressão atmosférica sobre o metabolismo anímico e corporal, a criteriosa seleção das espécies de repouso e lazer (Art der Erholung).
É o cuidado com estas ‘pequenas coisas‘ que pode levar às grandes e decisivas metamorfoses na vida, como a convalescença da doença à razão, a indicação do caminho para tornar-se o que se é, o trânsito para uma autêntica felicidade. Esta é a atmosfera espiritual que o filósofo traduz poeticamente, tomando seu corpo como ponte para o mundo: “Junto à ponte me achava/ há pouco na noite gris/Minha alma um alaúde/por mão invisível tocada/cantou para si em resposta/uma canção gondoleira/trêmula em mil tons de alegria/-Alguém a teria escutado?”2.
Num momento em que a sobrevivência da sociedade global parece confiada à onipotente factualidade da mais importante entre forças produtivas do capitalismo avançado, às tecno-ciências e suas variáveis de cálculo logístico, seria prudente escutar a advertência de um filósofo que considera os sentidos como o mais refinado dispositivo de cognição: “E que finos instrumentos de observação temos em nossos sentidos! Esse nariz, por exemplo, do qual nenhum filósofo falou ainda com respeito e gratidão, é, por ora,
o mais delicado instrumento à nossa disposição: ele pode constatar diferenças mínimas de movimento, que nem mesmo o espectroscópio constata. Nós possuímos ciência, hoje, exatamente na medida em que resolvemos aceitar o testemunho dos sentidos – em que aprendemos a ainda aguçá-los, amá-los, pensá-los até o fim. O restante é aborto e ciência-ainda-não: isto é, metafísica“3.
Pensar em profundidade o testemunho dos sentidos, é reaprender
o próprio sentido da ligação entre pensar, sentir e querer; é pensar para além do que ‘ainda não é propriamente ciência‘; num tempo em que a inteligência artificial parece confinar o pensamento no circuito do processamento de informações, convém lembrar da ‘grande razão’ de nosso corpo. Esta seria uma indicação prudencial e urgente, no sentido de uma retomada da sensatez e auto-domínio, da atenção para as ‘pequenas coisas‘ de importância fundamental.