Uma das mais importantes descobertas científicas do Sec. XX foi, sem dúvida, a constatação empírica, lastreada em fundamentos teóricos, de que a totalidade que denominamos Cosmos – o Universo astronômico enquanto expressão mais abrangente do existir natural – encontra-se em um estado inerentemente dinâmico, manifesto pelo chamado afastamento conjunto das galáxias observado por Hubble. Este extraordinário conceito de uma totalidade evolutiva (e, portanto, inacabada) tem, pelo menos, duas consequências de profunda importância.
A primeira diz respeito ao caráter evolutivo do Cosmos: o Todo tem uma história, e essa narrativa cósmica provê o pano de fundo em última instância para todas as outras histórias evolucionárias – a das formações materiais, abrangendo das partículas elementares aos aglomerados de galáxias; a das organizações vitais, das moléculas auto-reprodutoras aos ecossistemas; e a das invenções culturais, das capacidades cognitivas e gestos técnicos às civilizações. Como observa David Christian, essa “Big History”, que engloba o desdobramento do Cosmos, o desenvolvimento do Sistema Solar, a evolução da vida na Terra e o surgimento das sociedades humanas, deve em princípio ser o fundamento a partir do qual todas as vicissitudes, padrões e contingências da História haverão de adquirir sentido.
A segunda consequência diz respeito às próprias condições dessa constatação empírica: é necessário que as regras de constituição e atuação que vigoram na Totalidade admitam a ocorrência, em algum momento do percurso cósmico, de sistemas materiais exibindo um alto grau de complexidade, ainda que localizada, para que seja possível que o Cosmos evolutivo observe a si mesmo. Dito de outro modo, o mapeamento da superestrutura do Universo dinâmico em uma de suas partes (relativamente) infinitesimais exige que nesta parte opere um estado de sistema abertamente indeterminado, isto é, uma estrutura não-finalizada, apresentando uma larga condensação de potenciais de ligação, para que se possa formar uma imagem do Todo. Não é necessário adentrar aqui na acesa polêmica acerca do chamado Princípio Antrópico; basta, como sugere Robert Logan, compreender que a produção de um registro de um dado fenômeno por um certo conjunto de sensores demanda um nível apropriado de graus de liberdade, isto é, de inacabamento, no sistema observador.
Admitindo-se a validade dessas premissas, pode-se argumentar em seguida que a capacidade essencial requerida para realizar, interpretar e assimilar a verificação de um tal pertencimento cósmico seja a de processar e integrar vastos volumes de informação, de diferentes naturezas, e provindo de diversos contextos. No caso dos Homo sapiens, que certamente nos interessa de perto, os componentes dessa faculdade de performação complexa sobre sistemas complexos são chamados por Steven Mithen de inteligências. Seriam conjuntos de habilidades sensoriais, motoras e cognitivas, sob a regência de uma instância generalista, que permitiriam a apreensão de evidências naturais, o manejo de ações técnicas e a concepção de diagramas ideativos de modo a assegurar a seus praticantes uma decidida vantagem estratégica em seus agires sobre o mundo. Esse plexo de faculdades, tomado segundo um ponto de vista integrador, constituiria o que Stephen Hawking definiu como Inteligência: a capacidade de se adaptar a mudanças.
Já a ciência do Sec. XXI veio trazer novas nuances acerca dessas noções. Não apenas a inteligência humana é múltipla, ou seja, é composta por fatores variados atuando em orquestra, como o mundo natural – isto é, o planeta Terra – exibe toda uma variedade de sistemas adaptativos complexos orgânicos e ecossistêmicos que, de diversas maneiras, manifestam capacidades “inteligentes”. Das comunidades arbóreas (que antes conhecíamos como simples “florestas”), interligadas subterraneamente por uma vasta rede de conexões miceliais, até os superorganismos eussociais como formigueiros, colmeias e cupinzeiros, e sem esquecer a notável inventividade dos polvos, entendemos hoje que há um amplo espectro de habilidades cognitivas distribuído entre as “inumeráveis formas de grande beleza” de que falava Darwin. Duas perguntas surgem de imediato: caso a vida e a inteligência tenham se desenvolvido em outros astros, seria possível reconhecê-las? E, tendo em vista os extraordinários avanços recentes da Tecnociência, seria possível o desenvolvimento de formas artificiais de inteligir?
Há, no momento, grandes expectativas de que formas de vida elementares, provavelmente no aspecto de fósseis, sejam encontradas proximamente em nosso próprio Sistema Solar. E o lançamento de novos telescópios poderosos poderá suscitar a verificação de indícios de vida na atmosfera de exoplanetas distantes. Já a recente aparição e difusão de sistemas computacionais ditos “generativos” causou entusiasmo e temor em doses equivalentes. Esses programas muito iniciais de “Inteligência Artificial” (que talvez fosse mais conveniente, em vista de sua cabal incapacidade de adaptação efetiva, denominar de “dispositivos de Razão sintética”) podem vir a dar lugar, em mais ou menos tempo, a entidades realmente dotadas de cognição complexa. Segundo Nick Bostrom, há dois caminhos principais sendo abertos com este fim: modelos baseados na cognição animal e humana (afinal, “inteligência” é o produto de éons de evolução natural) e propostas que partem de princípios primeiros (afinal, “inteligência” surgiu a partir de substratos “não-inteligentes”).
O teórico da Tecnologia Kevin Kelly afirma que os objetos técnicos contemporâneos – os habitantes, segundo ele, de uma “Tecnosfera” similar à Biosfera – têm três diretrizes ou tendências: miniaturizar-se (e com isso condensar exponencialmente funcionalidades), distribuirem-se no ambiente (e com isso “invisibilizar-se”, adquirindo o anonimato das coisas que se tornaram íntimas) e aproximar-se de nós (e com isso diluir cada vez mais as fronteiras entre Matéria, Vida e Pensamento). O que parece certo é que precisaremos, nós os membros da Civilização Terrana atualmente em turbulenta gestação”, de todo o tipo de engenho, sensibilidade e arte para nos adaptarmos às enormes mudanças que cada vez mais rapidamente convergem sobre nós. Façamos como sugere Valéry, e tratemos de refletir e conversar sobre o que mais importa para esses amanhãs: a presença de coisas ausentes – ideias, utopias, sonhos, “coisas vagas”.