Como as crianças, a pessoa sensível é, no limite, um ser desprotegido – alguém não dotado da couraça psíquica reforçada que defende dos traumas. Em sua expressão mais pura, está exposto em carne viva à nudez da existência. O sensível-raiz a que me refiro não é recoberto pelo sistema de segurança das explicações, conceitos, abstrações – discursos, posturas e outros expedientes – que servem à impermeabilização tácita da sensibilidade exposta. Baudelaire fez ver (e Walter Benjamin fez com que víssemos em Baudelaire) que a sensibilidade poética num mundo de choques onipresentes tornava-se necessariamente uma sensibilidade em estado de alerta – uma sensibilidade armada. Pode-se aplicar ao poeta moderno o que diz Riobaldo da chegada de Deus no sertão: se ele vier, que venha armado.
Certo poema de Carlos Drummond de Andrade diz ainda: “Se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio”(“O sobrevivente”). Isto é, as criaturas sensíveis somos todos nós, menos (quase) todos, condenados a não chorar a tremenda alegria e horror do mundo. Mas recorrer à Drummond e Clarice, para nossos fins, será quase uma covardia. Qualquer frase de Clarice Lispector pode ser tomada como uma demonstração lancinante do tema. Um texto aparentemente impenetrável como “O ovo e a galinha” ganha uma clareza cristalina se lido como um manifesto delicioso sobre o (sem) lugar das criaturas sensíveis no mundo.
Pretendo falar ainda, ou mais, de uma criatura sensível em estado puro, e salva da impostura da fama: a poeta Orides Fontela.
“Tudo será duro: luz impiedosa / excessiva vivência / consciência demais do ser. // Tudo será / capaz de ferir. Será / agressivamente real. / Tão real que nos despedaça. // Não há piedade nos signos / e nem no amor: o ser / é excessivamente lúcido / e a palavra é densa e nos fere.” (“Fala”). Por isso mesmo, “nunca amar / o que não / vibra // nunca crer / no que não / canta”.
Orides é poeta amiga da filosofia. Nela, a compatibilidade ou não entre o pensamento e a sensibilidade está resolvida numa frase:
“O voo / pensa-se // o pensamento / voa.”