A sensibilidade e o teológico-político: religião e democracia 

Thomás Zicman de Barros

O ano de 2024 marca o centenário de nascimento de Claude Lefort (1924-2010), e convida a pensar sobre a atualidade da sua obra. Um tema central em seus trabalhos, sobretudo a partir dos anos 1980, foi a chamada permanência do “teológico-político” – ou seja, o papel do religioso na modernidade democrática. Trata-se de um assunto que ganha relevo num momento em que se vê uma nova investida de grupos religiosos sobre a política, muitas vezes em movimentos que parecem ameaçar a democracia. Em sua obra, Lefort se perguntava se a teologia seria algo do passado ou, ao contrário, uma gramática subterrânea que conduziria a forma como se pensa a política, mesmo quando o debate se dá em termos que parecem ser puramente seculares. Para Lefort, tanto o que ele chama de “político” quanto o “religioso” buscam prover matrizes simbólicas para lermos o mundo. Para usar termos que Lefort empregaria em seus comentários sobre Merleau-Ponty, pode-se dizer que as duas matrizes implicam experiências estéticas e éticas, formas de sentir. Apesar dessa proximidade, no entanto, há uma distância entre os dois: o religioso apresentaria representações do divino que reforçam certezas e pugnam por uma sociedade bem ordenada. O político, ao contrário, lidaria com símbolos de outra maneira, abrindo espaço para a indeterminação, para desencantar o mundo e questionar certezas e, nesse movimento, para experiências de emancipação. Para Lefort, portanto, o religioso não é uma gramática que define a modernidade, mas algo que reemerge e a ameaça. As contribuições de Lefort foram retomadas por diversos intelectuais. No Brasil, por exemplo, ainda nos anos 1990, Marilena Chauí afirmou que o populismo autoritário e paternalista chegaria ao poder mobilizando discursos religiosos. Fora do Brasil, “lefortianos” como Pierre Rosanvallon buscaram associar fenômenos autoritários à teologia política de Carl Schmitt. No centenário de Lefort, porém, talvez seja o momento de repensar e complexificar essa oposição entre o religioso e o político. Estaria o religioso sempre condenado a ameaçar a abertura que marca a modernidade democrática? Seriam todas as formas de encantamento do mundo deletérias? Através da diferença entre ideal e sublime, argumento que é possível pensarmos expressões do fenômeno religioso que impliquem diferentes formas de sentir e ser afetado. Longe de restringir o religioso à reafirmação da ordem, busco na história momentos em que as religiões tiveram papel emancipador e inclusivo, e afirmo que é importante relembrá-los para entender qual o papel que a religião pode ter na radicalização da democracia.

(Esta conferência é uma homenagem ao centenário de nascimento de Claude Lefort)