O Ser é; o Não-Ser não é. O Ser é uno, a pluralidade de seres é uma ilusão dos órgãos dos sentidos. Assim disse Parmênides de Eléia. O Ser é múltiplo e mutável. A unicidade e a permanência são uma ilusão dos órgãos dos sentidos. Assim disse Heráclito de Éfeso.
Seja num caso como noutro, a filosofia nasce afirmando a superioridade do pensamento sobre a sensibilidade, de tal maneira que Platão e Aristóteles afirmarão a superioridade do inelegível sobre o sensível e, a seguir, Santo Agostinho, primeiro, e Descartes, séculos depois, diante da dúvida de que existimos, pois a presença de nosso corpo mostra que mudamos sem cessar e que nem mesmo podemos distinguir entre a vigília e o sonho, de tal maneira que podemos imaginar que existimos e, no entanto, ser isso
a ilusão de um sonhador, abismo do que nos livramos quando podemos estabelecer como axioma ou prova de nossa existência a afirmação de que, se duvidamos, pensamos e, se pensamos, existimos, apesar as ilusões de nossos sentidos e mesmo contra eles. Mesmo quando Galileu virou a luneta para o céu, seu olhar não bastou para fundar a verdade físico-astronômica, que só poderia ser estabelecida pelo pensamento matemático, pois, como afirmou Galileu, “o livro do mundo está escrito em caracteres matemáticos” e somente o pensamento assegura sua inteligibilidade.
Estamos, assim, diante dos pilares do surgimento do que chamamos racionalismo, contra o qual, entretanto, ergueu-se a posição empirista ou a defesa dos dados que nos chegam pela experiência sensorial, levando à crítica do pensamento como simples abstração. No entanto, as querelas entre racionalismo e empirismo, que atravessaram a fieira dos tempos, pareceram filosoficamente resolvidas quando Kant, inaugurando o idealismo moderno ou a afirmação de que, silenciosamente, são as ideias que organizam a sensibilidade e, assim, submeteu a própria experiência às exigências do pensamento como organizador dos dados empíricos. Essa vitória do inteligível sobre o sensível se mostra no fato significativo, de Hegel ter escrito uma Fenomenologia do Espírito em cujo ponto inicial se encontra a consciência sensível, mas em cujo ponto final se encontra o espírito absoluto que absorve, completa, explica e conclui a trajetória supostamente necessária do saber ao rumar do sensível ao inteligível.
Não menos significativamente, porém, Merleau-Ponty escreveu uma Fenomenologia da Percepção, que culmina na afirmação do que podemos denominar como a dignidade ontológica do sensível, que seria desenvolvida em sua obra póstuma O visível e o invisível e cujas linhas mestras se encontram no ensaio, não menos significativamente, intitulado “O olho e o espírito”, que se abre com uma afirmação de Valéry: “o pintor traz seu corpo”, prosseguida por Merleau-Ponty com a declaração: “com efeito, não vemos como um espírito poderia pintar”.
Procuraremos, por intermédio de Merleau-Ponty, apresentar algumas questões postas pelo surgimento do chamado “mundo virtual” como recusa tanto da dignidade do sensível – a destruição da profundidade do espaço, do tempo e de nosso corpo – como da dignidade do inteligível – o aparecimento da chamada “inteligência artificial”.