Entre 1954 e 1968, Hannah Arendt escreveu uma série de ensaios publicados sob o título “Entre o passado e o futuro”. Ela considerou esse volume um “livro de exercícios de pensamento”, na experiência de brecha entre o passado marcado pela resistência e o futuro marcado pelo seu vazio. Atenta à perda do “tesouro” da energia da esperança, que movimentou os anos da Resistência na luta pela liberação, Arendt observou o vazio que se estabelece quando a liberação é alcançada. Alcançada, a ação pela liberação se libera da ação, e na perda do “tesouro” da ação revolucionária surge, nessa brecha, um outro tipo de energia, que poderíamos chamar, com o poeta Michel Déguy, “energia do desespero”.
As linhas de Arendt que abrem esse seu livro de exercícios ressaltam a dificuldade de pensar não apenas a sensibilidade necessária para a construção de um mundo no vazio de mundo, mas igualmente a urgência de uma sensibilidade de pensamento, no tempo do vazio de mundo. É, porém, na brecha desse tempo de vazio, que Arendt entrevê a possibilidade de um evento de pensamento o qual, à maneira da literatura de Kafka, emerge como um evento do pensamento na sensibilidade para essa brecha, para esse vazio. Poderíamos propor uma pequena “correção” e falar da possibilidade de um evento do pensamento da sensibilidade dessa brecha e vazio.
“Brecha” e “vazio” não são metáforas. São descrições da experiência de mutação de mundo. Mutação não é o mesmo que crise ou transformação do sentido, da sensibilidade e do sentimento de mundo. Mutação é a experiência do esvaziamento do sentido de sentido, da perda da sensibilidade para a sensibilidade, do domínio de sentimentos sem sentimento. Reconhecer essa mutação do sentido, da sensibilidade e do sentimento na ordem tecno-científica do mundo regido pela automação da autonomia e da autonomia da automação não significa, porém, entregar-se a uma visão pessimista ou apocalíptica de mundo. Significa reconhecer que não basta inverter teoricamente o regime da inteligência em nome do regime do sensível, a razão em nome da sensibilidade, a alma em nome do corpo, o espírito em nome da matéria, o homem em nome da natureza. Ao regime da razão instrumental, da alma avessa ao corpo, do espírito alienado da matéria pertence o que Clarice Lispector bem chamou de “sentimentação”, um regime do sensível inteiramente devedor do que o nega. Ou nas palavras do jovem Marx, um regime em que “todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pelo mero estranhamento de todos esses sentidos – o sentido de ter”. O intrigante na passagem de Arendt é, no entanto, a atenção para a possibilidade de um evento de pensamento, que é o pensamento de uma sensibilidade que brota da brecha e do vazio, como flor insignificante numa placa de cimento, feito orquídea parasita numa árvore extenuada.
Seguindo pistas distintas da fenomenologia que descreve a sensibilidade desde o polo de uma subjetividade individual ou intersubjetiva, empírica ou transcendental, na busca de provar as raízes sensíveis da razão, de evidenciar o corpo operante nos desvios da alma e do espírito, gostaria de propor uma atenção à sensibilidade da brecha e do vazio, ao modo de como essa sensibilidade é um modo de pensar pelo contato e a escuta da existência do sentir no sentir da existência se fazendo nessa brecha e vazio. É um “pensar-sentir” os múltiplos e pulverizados modos como a existência se faz sentir e assim sentido. Assim pode-se compreender quando Paul Valéry diz que “só sentimos o que se faz sentir”. “Nous ne sentons que ce qui se fait sentir “ (Paul Valéry, Cours de poétique I, 176). Em questão está o evento de pensamento da sensibilidade, que é um fazer, o fazer do sentir, do sentido e da sensibilidade, um fazer do fazer. Lembrando que a palavra sentido significa não só tensão, oposição ou reunião do inteligível e do sensível, sentido intelectual ou fisiológico, mas igualmente direção – seguiremos as direções da sensibilidade pensante na experiência da brecha e do vazio entre energia da esperança e energia do desespero. Seguiremos os vetores de sua insubordinação, de seus chamados, na “Resistência negra” de Pasolini e na poética das “ressurgências e emergências” de Henri Michaux.